O capitalismo fair play
No alto do Grand Canyon,
há um aviso pedindo que os turistas não alimentem os animais. E com uma
explicação. Eles vão gostar de ganhar um biscoito, mas vão se acostumar, e com
o tempo perderão o ânimo de caçar por conta própria. O economista italiano Luigi
Zingales gosta de contar essa história e diz que o mesmo vale para o mundo dos
negócios. Em geral é assim quando o
governo dá uma ajuda. Alguns ganham, e quase todos pagam a conta, de um jeito
ou outro, no longo prazo.
Zingales esteve no Brasil, na outra semana, para lançar seu
livro Capitalismo para o povo. O
livro é uma espécie de manifesto contra o que ele chama de “capitalismo de
compadres”. Poderia ser “estatismo de compadres”, daria na mesma. O conceito
cai como uma luva em um país como o Brasil. País do BNDES e seus “campeões
nacionais”; da política de “conteúdo local” nas compras do pré-sal; do nosso
“presidencialismo de coalizão”, de vezo patrimonial, movido a 23 mil cargos de
confiança; da incrível máquina de sindicatos atrelados ao Estado, sustentados
via imposto sindical.
Zingales traz algo novo ao debate público: defende que a
economia de mercado pode ser uma bandeira popular. Em diversas partes de seu
livro, menciona os movimentos Occupy Wall Street e Tea Party. Nas alegorias
tradicionais da política, eles não teriam nada em comum. Para Zingales, eles
expressam um mesmo mal-estar. O mesmo, quem sabe, a que assistimos nas ruas do
Brasil, em 2013 e 2015. Por vezes é a orgia de dinheiro público nos estádios da
Copa; por vezes é a corrupção na Petrobras. Mas o fio condutor é o mesmo: a
zona cinzenta, pouco republicana e eticamente insustentável entre a política e
o mundo dos negócios.
Zingales diz que não é um filósofo moral, mas
há uma evidente base filosófica em sua teoria. Ela diz que o senso de justiça
das pessoas não requer que a distribuição da renda, na sociedade, seja mais ou
menos igualitária. A exigência dos cidadãos diz respeito ao fair play. Todos
querem ganhar, mas antes de tudo querem que o jogo seja limpo. Isso requer não
apenas regras iguais, mas certa equivalência nas condições de partida de cada
um, na sociedade. Numa analogia com o futebol, ficamos furiosos com os 7 a 1
para a Alemanha, na Copa, mas ninguém reclamou que o resultado foi injusto. É
como funciona a meritocracia: aceitamos que o resultado se defina pelo talento,
ou mesmo pelo acaso. O que não vale é o truque, a sensação de jogo jogado. Vem
daí a ideia de um certo nivelamento do sistema de oportunidades. E esse é o
foco de Zingales.
A proposta de Zingales é simples: que o
Estado financie a educação, mas largue de fazer a gestão das escolas. Ofereça
um vale-educação e permita que os estudantes mais pobres estudem nas mesmas
escolas em que estudam os alunos de famílias com maior renda. Fair play, nos
pontos de partida. Atenção aos alunos, não ao lobby dos sindicatos.
O capitalismo fair play pode ser a melhor
agenda para as pessoas que foram às ruas, por estes anos, Brasil afora. Suas
exigências se chocam frontalmente com o atual estado de coisas da política
brasileira. Mas seus valores se estendem para muito além da política cotidiana.
A simplicidade das leis, a redução da máquina do Estado, o freio ao privilégio,
a equidade no sistema de oportunidades. Uma agenda oposta à tradição dos “donos
do poder”. Que toma força no coração do cidadão comum, a quem deve pertencer,
verdadeiramente, o espaço público.
Fernando Schüler