segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O capitalismo fair play

O capitalismo fair play

No alto do Grand Canyon, há um aviso pedindo que os turistas não alimentem os animais. E com uma explicação. Eles vão gostar de ganhar um biscoito, mas vão se acostumar, e com o tempo perderão o ânimo de caçar por conta própria. O economista italiano Luigi Zingales gosta de contar essa história e diz que o mesmo vale para o mundo dos negócios. Em geral é assim quando o governo dá uma ajuda. Alguns ganham, e quase todos pagam a conta, de um jeito ou outro, no longo prazo.
Zingales esteve no Brasil, na outra semana, para lançar seu livro Capitalismo para o povo. O livro é uma espécie de manifesto contra o que ele chama de “capitalismo de compadres”. Poderia ser “estatismo de compadres”, daria na mesma. O conceito cai como uma luva em um país como o Brasil. País do BNDES e seus “campeões nacionais”; da política de “conteúdo local” nas compras do pré-sal; do nosso “presidencialismo de coalizão”, de vezo patrimonial, movido a 23 mil cargos de confiança; da incrível máquina de sindicatos atrelados ao Estado, sustentados via imposto sindical.
Zingales traz algo novo ao debate público: defende que a economia de mercado pode ser uma bandeira popular. Em diversas partes de seu livro, menciona os movimentos Occupy Wall Street e Tea Party. Nas alegorias tradicionais da política, eles não teriam nada em comum. Para Zingales, eles expressam um mesmo mal-estar. O mesmo, quem sabe, a que assistimos nas ruas do Brasil, em 2013 e 2015. Por vezes é a orgia de dinheiro público nos estádios da Copa; por vezes é a corrupção na Petrobras. Mas o fio condutor é o mesmo: a zona cinzenta, pouco republicana e eticamente insustentável entre a política e o mundo dos negócios.
Zingales diz que não é um filósofo moral, mas há uma evidente base filosófica em sua teoria. Ela diz que o senso de justiça das pessoas não requer que a distribuição da renda, na sociedade, seja mais ou menos igualitária. A exigência dos cidadãos diz respeito ao fair play. Todos querem ganhar, mas antes de tudo querem que o jogo seja limpo. Isso requer não apenas regras iguais, mas certa equivalência nas condições de partida de cada um, na sociedade. Numa analogia com o futebol, ficamos furiosos com os 7 a 1 para a Alemanha, na Copa, mas ninguém reclamou que o resultado foi injusto. É como funciona a meritocracia: aceitamos que o resultado se defina pelo talento, ou mesmo pelo acaso. O que não vale é o truque, a sensação de jogo jogado. Vem daí a ideia de um certo nivelamento do sistema de oportunidades. E esse é o foco de Zingales.
A proposta de Zingales é simples: que o Estado financie a educação, mas largue de fazer a gestão das escolas. Ofereça um vale-educação e permita que os estudantes mais pobres estudem nas mesmas escolas em que estudam os alunos de famílias com maior renda. Fair play, nos pontos de partida. Atenção aos alunos, não ao lobby dos sindicatos.
O capitalismo fair play pode ser a melhor agenda para as pessoas que foram às ruas, por estes anos, Brasil afora. Suas exigências se chocam frontalmente com o atual estado de coisas da política brasileira. Mas seus valores se estendem para muito além da política cotidiana. A simplicidade das leis, a redução da máquina do Estado, o freio ao privilégio, a equidade no sistema de oportunidades. Uma agenda oposta à tradição dos “donos do poder”. Que toma força no coração do cidadão comum, a quem deve pertencer, verdadeiramente, o espaço público. 
Fernando Schüler